sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

dois poemas ingleses (two english poems)- jorge luis borges

I
a inútil alvorada me encontra em uma esquina deserta; sobrevivi à noite. as noites são ondas orgulhosas: ondas de pesada crista azul-escura cheias de tons de espólios fundos, cheias de coisas improváveis e desejáveis. as noites têm o hábito de misteriosas dádivas e recusas, de coisas meio dadas, meio retidas, de alegrias com escuro hemisfério. as noites procedem assim, creia-me. a vaga, nessa noite, deixou-me os pedaços e as sobras avulsas de costume: uns amigos odiados para bater papo, música para sonhos e o fumegar de cinzas amargas. coisas sem uso para meu coração faminto. a grande onda trouxe você. palavras, quaisquer palavras, seu riso;  e você, de uma tão preguiçosa e incessante beleza. conversamos e se esqueceu das palavras. os estilhaços da alvorada me encontraram em uma rua deserta de minha cidade. seu perfil que se desvia, os sons que compõem seu nome, a cadência de seu riso; ilustres brinquedos que você me deixou. revolvo-os na alvorada, perco-os, encontro-os; revelo-os aos poucos cães erradios e às poucas estrelas erradias da alvorada. sua preciosa vida obscura... tenho de alcançá-la, de algum modo; guardo esses ilustres brinquedos que você me deixou, quero seu olhar oculto, seu sorriso real- esse sorriso solitário e zombeteiro que seu frio espelho conhece.

II
com que posso detê-la? ofereço-lhe ruas decaídas, ocasos desesperados, a lua dos subúrbios maltrapilhos. Ofereço-lhe o amargor de um homem que por longo e longo tempo contemplou a lua solitária. ofereço-lhe meus ancestrais, meus mortos, os espectros que os vivos honraram em mármore: o pai de meu pai morto na fronteira de buenos aires, duas balas nos pulmões, barbudo e morto, envolto por soldados em uma pele de vaca; o avô de minha mãe- apenas vinte e quatro anos- a comandar um ataque de trezentos homens no peru, hoje espectros sobre cavalos extintos. ofereço-lhe qualquer intuição que meus livros tenham, qualquer hombridade ou humor de minha vida./ofereço-lhe a lealdade de um homem que jamais foi leal./ ofereço-lhe esse meu cerne que de algum modo preservei- o coração central que não lida com palavras, não comercia com sonhos e não foi tocado pelo tempo, pela alegria, pelas adversidades. ofereço-lhe a lembrança de uma rosa amarelada vista no ocaso, anos antes de você nascer. ofereço-lhe explicações de si mesma, teorias de si mesma, novidade autênticas e surpreendentes acerca de si mesma./ posso lhe dar a minha solidão, minha treva, a fome do meu coração; estou tentando aliciá-la com incerteza, com perigo, com derrota.

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